Dulce otium
Por Paula Ramos
Nos dias atribulados em que vivemos, falar de ócio é falar de preguiça, inação, inoperância. São esses os sentidos comumente associados à palavra; sentidos depreciativos, dentro da lógica de produção e eficiência à qual a sociedade capitalista nos acostumou. A palavra latinaotium, entretanto, guarda em sua origem outras conotações. Os antigos romanos chamavam otium às ocupações com o trabalho intelectual e com a fruição, em oposição ao nec-otium, o negócio, destinado a atender às necessidades de subsistência da sociedade. Assim, nos aforismos de pensadores como Plínio, Sêneca e Tácito, otium desponta como o estado de contemplação da natureza, dos textos, das coisas belas, daquilo que clama nossa admiração; otium remete às vivências agradáveis, a um tempo de deleite e de apaziguamento; por extensão,otium também sugere o encontro do indivíduo com ele mesmo, diante dos objetos, pessoas e situações que lhe aprazem e tranqüilizam. De certo modo, é esse significado primordial que a brasileira Marta Penter enfatiza em seus mais recentes trabalhos.
Na série Otium, vemos figuras em um ambiente de praia, vestidas com trajes de banho ou com maleáveis shorts e camisetas. Em repouso ou em passagem, o que as move é um invejável desfrute do momento e da brisa. Algumas levam consigo a cadeira de praia, simbólica certeza do bem estar; outras já se encontram relaxadas e descontraídas, lendo, observando os que passam, dourando-se.
Penter produziu as pinturas e aquarelas a partir de um delicado exercício de observação junto à Praia do Rosa, uma das mais freqüentadas do litoral de Santa Catarina. Em meio à agitação típica das praias brasileiras, deparou-se com pessoas absortas em universos particulares, entregues a momentos apenas seus, de quietude e pausa. Nada parecia abalar-lhes; nada parecia tirá-las do torpor daqueleIucundum... nihil agere, do “agradável nada fazer” de Plínio, o Jovem, base para a famosa expressão italiana Il dolce far niente. Com discrição, Penter registrou fotograficamente aqueles momentos de trégua e remanso e, mais tarde, interpretou-os com sensibilidade e uma certa dose de humor. Afinal, que jornal traria em sua capa a abstrusa manchete Será que o mundo existe? Conscientes que somos do relógio moral de “horas úteis” que rege a contemporaneidade, talvez fosse mais lícito perguntar Será que esse tempo de retiro e placidez existe?
No fundo, sabemos que sim. Em algum momento já usufruímos dele, nem que tenha sido pela imaginação, nem que esse tempo esteja reverberando da memória. Esse é um dos conceitos-chave de Penter: a memória, individual ou coletiva, real ou projetada. Partindo da fotografia, a artista leva aos planos do papel e da tela, em alentadas e impressionantes composições de viés hiper-realista, suas figuras oriundas de outras épocas e vivências, de momentos de intimidade e lazer, de convívio e partilha. Estabelece, nesse processo, um diálogo com as poéticas de Edward Hopper (1881–1967) e de Gerhard Richter (1932). E, na tessitura entre fotografia e desenho, entre fotografia e pintura, reafirma a experiência. Se, como lembra Luiz Carlos Felizardo, a fotografia traz informações e gera considerações sobre o passado, fazendo com que ele assuma, novamente, a condição de presente, na obra de Marta Penter há, pelo menos, uma terceira temporalidade, fruto da sua interpretação e comentário sobre o que observa. É como se, ao manejar pincéis e tintas, ela efetivamente revivesse as cenas que representa. E, não somente isso, como se compreendesse as cismas, as alegrias e até mesmo as possíveis angústias de seus personagens. De fato, o humano pauta suas divagações; o humano lhe comove e instiga; ele é a essência de seu pensar e obra.
Para a artista, a memória é sempre em preto e branco. Várias de suas séries se desenvolveram na extensão dessa paleta. Nos trabalhos atuais, porém, irrompe um curioso azul, estrategicamente aplicado. Ele surgiu em 2009, durante uma viagem de Penter a New York. Caminhando pela cidade, por seus museus e parques, pôs-se a fotografar pessoas deitadas na grama, ou sentadas em cadeiras reclináveis, conversando e receptivas aos raios de sol, em momentos de descanso. Dessas imagens, elegeu apenas as figuras humanas, representado-as com grafite em pequenas folhas de papel e deixando-as como que suspensas no centro da página. Não havia, portanto, paisagem ou cenário, mas tão somente as figuras isoladas, com poucos objetos, alguns dos quais matizados pelo azul da caneta Bic. Foram esses trabalhos que Penter apresentou no StudioClio, em Porto Alegre (RS, Brasil), com o título de In Suspenso, e foram eles que a estimularam a produzir as obras que integram esta exposição.
Nas pinturas e aquarelas da série Otium, o azul vibra nos pormenores: ele está em detalhes de capas de revista, em fragmentos esparsos, em cadeiras de praia. Contrapondo a qualidade atemporal do preto e branco, o azul traz para o aqui e agora, para o tempo presente. De certa forma, ele aproxima a possibilidade do desfrute, ele incute frescor às cenas, ele torna mais palpável o aconchego representado pela cadeira de praia que, em anil, remete às primeiras estruturas do tipo a circular no Brasil. O mesmo fulgurante anil que há séculos carrega consigo sentimentos de entusiasmo e otimismo, semelhantes à confiança e à energia que emanam do gesto das moças posando para a foto, ou das jovens que, determinadas, andam contra o vento, levando as sandálias de plástico, tão emblematicamente brasileiras.
Arrebatados pelo prazer da entrega, do encontro consigo mesmo, esses personagens sem identidade não retratam ninguém, mas podem nos reportar ao ambiente idílico que habitam. Na quietude desse tempo e lugar construídos pela experiência da artista, somos convidados a também serenar, a também diminuir a velocidade, a acreditar que a condição de genuíno otium não apenas depende em grande parte de nossas escolhas, mas que talvez devesse pautar nossa própria existência.
* Doutora em Artes Visuais, Crítica de arte e Professora do Instituto de Artes da UFRGS